Livro de Eula Pinheiro sobre José Saramago

Estudo de Eula Pinheiro analisa romances do ‘primeiro Saramago’

Sabático, O Estado de S. Paulo, 04 de fevereiro de 2012

Maria Fernanda Rodrigues/AE
Boneco e fotos do escritor e de familiares expostos na casa em que ele morou com Pilar Del Río

Eula Pinheiro não transformou a dissertação de mestrado que fez sobre a obra de José Saramago em livro assim que a apresentou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1993. Tampouco aproveitou o fato de seu objeto de estudo ter conquistado o Prêmio Camões em 1995 ou o Nobel em 1998. A morte dele em 2010 também não a fez apertar o passo. E não foi por falta de editora.

Ana Cândida ainda trabalhava em uma grande casa em meados dos anos 90 quando conheceu o trabalho de Eula. Gostou tanto que resolveu guardar para a Musa, sua editora que começava a caminhar, a ideia de publicá-lo. Mas também não o fez.

O ano de 2011 foi decisivo para que esse projeto saísse da gaveta e abrisse espaço para uma série de outras ideias que a pesquisadora pretende colocar em prática quando estiver reestabelecida em Lisboa, cidade onde passou a maior parte do ano passado e que foi responsável pela mudança do vento.

Foi nesse período que ela pode se aproximar de Pilar Del Río, a viúva de José Saramago, e conviver com as pessoas que o cercavam. Participou de importantes momentos relacionados à memória dele: a abertura da biblioteca da casa de Lanzarote, a pré-estreia de José e Pilar no Rio e a deposição de suas cinzas na oliveira da Casa dos Bicos, que abrigará a Fundação Saramago, em Lisboa. Toda essa dedicação está para ser recompensada com uma mesinha com vista para o Tejo nessa mesma fundação.

Enquanto isso não acontece, Eula se ocupa com a edição de José Saramago - Tudo, Provavelmente, São Ficções; Mas a Literatura É Vida, prevista para abril. No bairro de Perdizes, em São Paulo, editora e autora se encontram na nova sede da Musa para discutir o projeto gráfico e selecionar as imagens. Eula trouxe muitas fotografias de Portugal – das viagens que fez pelas rotas saramaguianas e dos eventos de que participou. Elas devem vir em um caderno e serão alternadas com citações dos romances estudados. A capa foi feita por Raquel Matsushita a partir da tela O Dia Seguinte, do artista plástico português Júlio César – ele também um fã de Saramago.

Há 26 anos acompanhando a trajetória do escritor, a pesquisadora analisou, em sua dissertação transformada agora em livro, os cinco primeiros romances publicados no Brasil - Levantado do ChãoMemorial do ConventoO Ano da Morte de Ricardo ReisJangada de PedraHistória do Cerco de Lisboa -, e a edição portuguesa de Manual de Pintura e Caligrafia, livro que só seria lançado no País às vésperas da defesa da tese. Outro romance chegou ao País quando Eula concluía o trabalho, mas acabou ficando de fora: O Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos mais polêmicos dele.

Essas sete obras pertencem à fase que o próprio autor chamou de estátua. O que veio depois pertence à fase pedra, ou universal. “José Saramago, sendo já autor de uma vasta obra, deu-se conta de que até O Evangelho Segundo Jesus Cristo tinha estado empenhado em descobrir a estátua, mas que a partir de Ensaio Sobre a Cegueira o seu interesse era outro, tratava-se de descrever a pedra de que a estátua é feita”, escreve Pilar no prefácio.

Eula explica: “A fase estátua é o trabalho com a pedra, ou seja, a abordagem de temas locais e particulares. Memorial do Convento conta a história da construção do convento de Mafra no século 18. Levantado do Chão aborda toda a problemática de um país agrícola na ditadura do século 20. Depois vem Jangada de Pedra e a questão do iberismo. Já em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o tema é Fernando Pessoa”. Nas obras posteriores, ele trabalha com a pedra, que é a essência da estátua. “Mas no fim tudo foi pedra porque ele sempre falou do homem”, reavalia.

A ideia da divisão de sua obra em fases não é muito difundida no Brasil, analisa a autora. Saramago usou a expressão pela primeira vez em um discurso que fez em Turim. Improvisada, essa fala foi transcrita em Portugal para voltar a Turim, para as mãos da artista Luciana Stegagno Picchio, que produziu 126 exemplares da peça A Estátua e a Pedra.

O percurso da leitura feito por Eula não foi totalmente cronológico. “Eu havia lido do Levantado até História do Cerco de Lisboa e pensei que se o Manual de Pintura e Caligrafia trouxesse as respostas às perguntas que estava a fazer-me, fecharia o meu trabalho. Ali, vi que ele já antecipava questões que viria a tratar até a última linha escrita, e conclui minha tese.” O livro que clareou as ideias da pesquisadora é de 1976 e foi o primeiro da nova fase de Saramago, que já tinha lançado, em 1947, Terra do Pecado.

O escritor Domingos Lobo destaca, no posfácio, a análise que Eula faz desse romance antigo, “um dos menos amados de Saramago”, e o que nele encontra: o jogo intertextual e com as derivantes da sabedoria popular, a tradição oral, as componentes metonímicas, a herança dos campos semânticos, o sentido humano da literatura e a sua ligação com as outras artes, o mágico e o fantástico e o sentido de que toda a verdade é ficção. A memória do ouvido e do vivido, o cotidiano das pessoas comuns e os pequenos acontecimentos já estão nesse primeiro livro e serão vistos nos seguintes.

“A metáfora que fiz em 1990, que foi algo de bastante vanguarda pelo que disseram depois, foi a da construção. Coloquei o Manual de Pintura e Caligrafia como alicerce, os quatro outros romances como paredes e numa laje, com a possibilidade de novas paredes, o História do Cerco de Lisboa. Deixei isso preparado. Claraboia completou a casa”, diz referindo-se ao romance escrito por Saramago aos 30 anos e que só foi publicado em 2011.

Com seu livro lançado e divulgado, Eula mergulha em outros projetos. As rotas saramaguianas, por exemplo, que começou a percorrer no ano passado, devem virar livros infantis em que a autora mostrará os cenários onde Saramago situa suas histórias. E o doutorado, sobre a obra não ficcional do escritor, deve ser transferido da PUC do Rio para alguma universidade lisboeta. O título provisório é O Intelectual se Levanta no Silêncio do Mundo para Intervir na Realidade.

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